METRÓPOLE II
Os carros avançam lentamente
sobre o sinal fechado
- como num pesadelo que tive
quando criança -
enquanto atravesso fora da faixa
num contrariamente lento passo
displicente.
Noite fria, pé tenso.
São Paulo não me faz tanto bem;
meus olhos ardem mais
que há quatro anos atrás,
e meu nariz respinga.
A noite é úmida,
mesmo sem chuva nem garoa
- São Paulo já não é mais a
terra da garoa -
e o frio entra pelas minhas meias
onde não há tênis
e se aloja nos calcanhares.
Tal qual bêbado
meus pés se arrastam,
ainda que ágeis,
enquanto ouço um carro passando
tocafitas tocando
"Yes"
e um cartaz do "Made in Brazil"
com show pro dia 11.
O rock ainda é a música
do concreto paulistano;
os operários e os punks
ainda se alteram nos domingos
para voltarem ilesos
às suas fábricas
e comércios
nas segundas.
Nem todos gostam de samba,
mas há no entanto quem dance
bolero.
Paqueras, namoros,
trepadas sob o teto do carro;
todavia caminho,
e vejo assim uma garotada
de bunda suja na calçada
olhando pros olhos de quem passa
e também pros bolsos.
Meninas bonitas que passam
- nem sempre bonitas -
que olho e também me olham
- outras ignoram -;
às vezes, no entanto,
uma cantada de voz grossa
ou de másculo falsete,
quando não chamando pra briga
(quiqui cê tá olhando? Num gostô, ô meu?)
ou mesmo obscenidades de prostituta;
ou alguém que te paquera e você
não sabe
se é mulher, homem,
travesti ou biscate
- ou outra variação -.
Bares com pinga,
guaraná e empadinhas.
às vezes uma vista d'olhos
para dentro duma pastelaria
a ver se encontro alguém conhecido
tomando caldo de cana
ou um copo de cerveja.
Uma olhada nas vitrines
do "Shopping Center Lapa"
- como estão altos os preços!
uma camisa ao preço
de um gravador
e um gravador que custa
um tratamento de câncer! - .
E eu espirro!
Parece que o rapaz do lado
está querendo me imitar;
só que ele não usa lenço,
prefere os dedos.
Ludere cum digiti.
E continuo meu passeio a pé
sentindo cheiros
então desagradáveis,
incertos na origem -
não é o cheiro do progresso - .
Minha bolsa roda
de trás pra frente
e meus olhos lacrimejam
num misto frio
de poluição e melancolia,
porque nesta droga que me cerca
um pedaço de meu corpo ficou preso.
é meu sêmen, e mesmo que não queira,
mesmo que não goste
faz sempre com que a gente
tenha de voltar.
Não é por saudades
mas por ser necessário,
mesmo que os cinco ou
mais sentidos reclamem
das árvores caídas e não repostas,
das florestas extintas,
índios mortos e asfaltos governantes,
da manhã sem sol, sem calor,
úmida e fria,
que vem botar
a noite no passado
e tentar um novo dia
e tentar um novo dia
e tentar um novo dia
hasta la muerte pelo menos.
leopoldo pontes
são paulo, 13 de abril
de 1981 .